O auto da barca de metal do inferno
QUANDO A LITERATURA E O ESPORTE EXPLICAM O COTIDIANO
Suplício, aperto, caos: eis o metrô de Beagá, explicado pela obra de Gil Vicente
Por Guilherme Reis
Capa original de Auto da Barca do Inferno
Imagem: Wikipédia
Toda manhã eu, vosso jornalista desafortunado, tenho uma rotina maçante e duradoura. É com muito desgosto que acordo bem cedo. É o dever de trabalhar. É a sina daqueles que laboram em troca de alguns vinténs furados. Faço parte daquele pessoal que atravessa o pântano de sono, preguiça e desespero que fica entre o feudo de Contagem das Abóboras e o reino “encantado” de Belo Horizonte.
Ao raiar o dia, milhares de pessoas se encaminham para o abate da sobrevivência diária. O caminho e a forma de atravessar o tal pântano é o mesmo. A barca de metal conduzida pelos ceifadores impiedosos de pobres almas. Toda manhã aquela imensa barca chamada de metrô aparece nos trilhos.
Parece uma reprodução moderna de Gil Vicente, o dramaturgo português do século XV que escreveu o “Auto da Barca do Inferno”. Nele Gil descreve o momento em que almas embarcavam na barca do diabo que ia para o inferno, ou para a barca de um anjo celestial, que ia para o céu.
A barca moderna tem algumas diferenças. Ela vem nos trilhos e ainda não nos apresentaram a barca que vai para o paraíso. Todo santo dia é a mesma coisa. As roletas parecem o último ponto de salvação. Depois delas já era, você terá de entrar na barca de metal. O pior ainda é que a estação Eldorado, a que embarco, é a primeira. Não cabe tanta gente assim. As filas começam já cedo e os vagões vão entupidos de almas encomendadas. Quando a barca chega uma voz vil e impiedosa soa e manipula o seguinte diálogo:
Trabalhador — Porém, a que terra passais?
Diabo (condutor da barca) — Para o inferno, senhor.
Trabalhador — Terra é bem sem-sabor.
Diabo (condutor da barca) — Quê?... E também cá zombais?
Trabalhador — E passageiros achais para tal habitação?
Diabo (condutor da barca) — Vejo-vos eu em feição para ir ao nosso cais...
Trabalhador — Parece-te a ti assim!...
Diabo (condutor da barca) — Em que esperas ter guarida?
Trabalhado — Que leixo na outra vida quem reze sempre por mim.
Diabo (condutor da barca) — Quem reze sempre por ti?!..
Hi, hi, hi, hi, hi, hi, hi!...
E tu viveste a teu prazer,
Cuidando cá guarnecer
Por que rezam lá por ti?!...
Embarca — ou embarcai...
Que haveis de ir à derradeira!
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Toda manhã aquela imensa barca chamada de metrô aparece nos trilhos.
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Todos nós entramos todos os dias. Custamos a passar das roletas que estão inchadas de tanta gente. Subimos a escada da estação e novamente nos deparamos com um mar de condenados. Somos tão errados que temos que esperar pela barca várias vezes, já que uma, ou duas não nos cabem. Quando entramos o castigo começa. Em pé ou sentados sofremos torturas horrendas. São cotovelos, mochilas, pastas e falta de espaço. Não bastasse tanta desgraça, ainda entram mais almas condenadas nas próximas estações.
Cidade Industrial, Vila Oeste, Calafate, Gameleira, Carlos Prates e enfim Lagoinha. Essa última é o fim da primeira etapa diária. Nela desço e, como outros milhares de pessoas, me preparo para uma jornada de trabalho.
É o dia inteiro prestando serviços para, quem sabe, algum dia alcançar o paraíso. Quando acaba a labuta eu e meus companheiros aguardamos a chegada da última etapa do castigo que se repete dia a dia. Chegou o momento de nos encaminharmos para a barca mais uma vez. É um suplício. Mais uma vez os pobres condenados terão de se acomodar na barca de metal que passa pela Estação Lagoinha. Agora o caminho é de volta e revolta. Muitos correm para pegar os melhores lugares para sofrerem menos.
Mais uma vez aquela voz ecoa:
Diabo (condutor da barca) — Entra, entra, e remarás!
Nom percamos mais maré!
Essa é a rotina daqueles que não tiveram a sorte ao lado. Na verdade a maioria. Quem tem que pegar todos os dias a mesma barca já sabe. Todos nós nos perguntamos: Ô metrô! Por que fazes isso comigo todos os dias? O que fiz para merecer isso? Parece que a Secretaria das Barcas Públicas nos esqueceu!
Vivemos assim, esperando a outra barca chegar dos céus, porque pelos trilhos...
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